quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Marcha, pés descalços,
Em direção ao mundo velho.
Que, no mapa dos homens, está arriba.
Segue adiante que sigo suas pegadas.
Marcha
E quando lá chegar olha pra baixo
E me diz se vale
as bolhas,
a sola em carne viva...
Sou covarde,
Não vou me arriscar.

Anne,
2009.

Dança das massas

Eu vou,
No canto,
No passo,
No espaço.

Vou,
No medo,
No horror,
Na dor.

Eu vou,
Na fé cega,
Na luta que não vence.
Vou entre a multidão,
Lenta e sempre.

No grito,
Suplício,
Clamor.
Entre carência e amor.

Vou, na terra roubada,
Na roupa rasgada,
Na pele suja,
Imunda,
Que fede.

Desço à miséria,
Subo à esperança,
Meu corpo não cansa da dança
Enquanto houver ritmo
Eu vou.

Anne,
2009

Dinâmica cruel

Desconecto-me todos os dias para viver.
Se fosse ser mesmo em essência
Morreria de fome.
Se a dinâmica da vida exige uma dose de não ser
Maior do que suporto
Deixo de existir.
Passo a fingir ser o que não sou.
Quantas pessoas nas ruas fingem.
Esse é um dos lados cruéis da vida,
quando se morre de fome sendo o que é.

Anne,
2009.

Uma análise

O desejo de experimentar a estranheza + suposição = escrita não excessivamente biográfica.

"Quase sempre, o poeta inicia o percurso pensando que sua vida rende poesia. Confunde a pulsão emotiva com o excesso biográfico. Conclui equivocadamente que basta sentir para escrever poesia. Mas sentir não faz poesia. Quem sente é poesia, não poeta. O poeta é o que não sente e se esforça para sentir. A emoção não apanha a realidade, apanha da realidade."

será?

Rasga-me a carne

A marca da fera que cortou minha carne está desenhada até hoje no mesmo lugar,
O sangue já secou, um pouco escorreu em minha boca e pude sentir o sabor do ódio.
Essa sim é letal, impiedosa, foi fundo
A fera me apunhalou
Mas eu tinha outro órgão guardado no jarro de barro,
Logo substituí.
Rasga de novo a carne, fera maldita,
Que quero ver você me consumir
e eu
Mais uma vez reagir.
Rasga-me.

Anne,
2009

O Outro

o que me intriga é a profundidade,
o espaço entre o que se pode ser e o que se é.
onde podemos chegar em nós mesmo.
se escolhemos a superficialidade ou
não conseguimos ultrapassar um limite.
Algumas pessoas parecem ir fundo,
Parecem alcançar a si mesmas
de uma maneira admirável.
isso me intriga.
onde vou e onde posso ir.
o que escolho
se escolho
ou não.
o olhar do outro sobre mim me intriga
meu olhar sobre mim
me incomoda.
uma angústia me corrói a alma,
algo em mim clama por solidão
como se somente diante dela pudesse finalmente se mostrar.
será o desejo de descobrir afinal
o que está na mente do outro?
o outro
sempre a me espreitar,
meu demônio interior,
meu maior medo,
minha fuga de mim.
a cabeça enche e esvazia,
e n c h e
e s v a z i a
na presença constante do outro.
em todo canto ele está.
o coração pulsa
porque não pode parar
se pudesse...
quero expurgar o outro
assoar,
escarrar,
vomitar,
não consigo.
quero entender,
quero saber o que se passa afinal
na mente que não é minha,
no corpo que não é meu.
essa é minha prisão.
não me liberto,
vou desfrutá-la então.

Anne,
2009

domingo, 18 de janeiro de 2009

Gentil Fera

Agora sei
Fui apresentada a tal.
Que gentil essa fria personagem,
Não é de muita conversa.
Costuma devolver os questionamentos
existenciais
com outros vários.
Isso, quando não te deixa
sem respostas.
Tantos me falavam
e eu não queria saber.
Pensava: não tenho tempo a perder
ficando a sós com essa fera.
Ela ainda me devora o pensamento!
(antes tivesse confiado a ela todo meu tempo ocioso!)
Eis-me aqui, só.
Não é tão insuportável!
Sozinha
Tomar sorvete,
Ir ao cinema no domingo à tarde,
Organizar o guarda-roupa,
a estante de livros, aproveitando
para selecionar a leitura da semana,
aquele livro que nunca terminei, olha só!
Cuidar dos amigos que sempre entendiam
A ausência.
Tantas coisas, tantas.
Mas, principalmente, cuidar de mim.
Ouvir meus pensamentos
Descobrir o prazer de ficar só
e ainda assim estar bem acompanhada.
Não digo que prefiro assim, mas,
tenho aprendido muito com essa gentil fera.
Entre, solidão! A porta está aberta,
estava mesmo precisando da sua companhia.

Anne,
2009

Só pra constar

Li num livro de Gilberto Dimenstein
Que houve um tempo em que a sociedade discutia
Sobre a importância da escravidão para a economia.
Parece incrível, mas, hoje ainda aceitamos muitas outras
Arbitrariedades como se fossem inerentes a nossa natureza.
Ainda que sejam, temos que superar essa mediocridade.

Anne,
2009